VEROLME
Verolme Brasil: Do Estaleiro Naval à Aposta Audaciosa em Armas Terrestres — Uma História de Inovação e Crise na Indústria Nacional
Entre os anos 1960 e 1980, o Brasil vivenciou um dos períodos mais dinâmicos da sua indústria pesada. Nesse cenário, a Verolme Brasil, subsidiária da gigante holandesa Verolme Verenigde Scheepswerven, instalada em Angra dos Reis (RJ) em 1959, destacou-se como um dos maiores e mais modernos estaleiros do país, ao lado da Ishikawajima do Brasil. Por duas décadas, a empresa foi um pilar da construção naval nacional, entregando petroleiros, navios de carga e embarcações especializadas com tecnologia de ponta.
Mas o início dos anos 1980 trouxe uma virada dramática. Com o país mergulhado em recessão econômica, a crise da dívida externa e o fim dos subsídios estatais ao setor naval, a Verolme — como toda a indústria do setor — viu seu modelo de negócios ruir. Diante do colapso, a empresa tomou uma decisão ousada: diversificar radicalmente. E foi nesse contexto de sobrevivência que a Verolme deixou os estaleiros e entrou, de forma inusitada, no mundo dos veículos militares terrestres — uma saga quase esquecida, mas fascinante.
A Diversificação como Estratégia de Sobrevivência
Em 1983, logo após ser vendida a um grupo de investidores brasileiros, a Verolme anunciou um ambicioso plano de reestruturação. Longe de se limitar à construção naval, a empresa exploraria atividades agropecuárias (como criação de gado e plantio de soja, com incentivos fiscais) e, mais surpreendentemente, usaria sua capacidade industrial ociosa para fabricar:
- Embarcações militares
- Dragas
- Equipamentos pesados para mineração e construção civil
- Veículos especiais terrestres
A primeira tentativa foi a produção de um caminhão fora-de-estrada de 200 toneladas, com tração elétrica da General Electric, sob licença de uma empresa norte-americana não identificada. O projeto, no entanto, fracassou devido à impossibilidade de fechar um acordo de transferência de tecnologia.
Sem desistir, a Verolme voltou-se então para um nicho mais acessível: veículos de combate a incêndio.
O Caminhão São Bernardo: Sucesso Técnico, Limitado Comercialmente
Em julho de 1985, a Verolme apresentou seu primeiro produto terrestre concluído: o caminhão de combate a incêndio em aeroportos "São Bernardo". Embora baseado inicialmente no furgão Mercedes-Benz 608 D, a versão final utilizou componentes da Scania, demonstrando a capacidade da empresa de integrar tecnologias de alto nível.
Características técnicas do São Bernardo:
- Chassi, eixos, caixa de câmbio e motor Scania (370 cv)
- Tração 4x4 com bloqueio de diferenciais
- Peso operacional: 14 toneladas
- Tanques para água, espuma e pó químico
- Bomba de alta pressão: vazão de até 4.000 litros por minuto, com alcance de 60 metros
- Carroceria em alumínio, com cabine avançada e design moderno
O veículo foi comercializado em pequena escala, principalmente para aeroportos brasileiros, tornando-se o único produto terrestre da Verolme a entrar em produção real.
O Projeto Militar Mais Ambicioso: O Obuseiro AS90 Mallet
Paralelamente, a Verolme mergulhou em um projeto militar de alto risco e alto potencial: a fabricação de obuses para a OTAN.
Inicialmente, a ideia era produzir sob licença o FH 70, um obuseiro rebocado de 155 mm desenvolvido em parceria pela Vickers (Reino Unido), Rheinmetall (Alemanha) e Oto Melara (Itália), com alcance de 30 km e ampla adoção entre países da aliança.
Mas o plano logo evoluiu para algo muito mais complexo: a construção de uma versão autopropelida sobre lagartas, equipada com o mesmo canhão do FH 70. Esse novo sistema, ainda em desenvolvimento pela Vickers, seria chamado AS90 Mallet — uma variante experimental do que viria a se tornar o famoso AS90 Braveheart.
A Verolme foi escolhida para construir o protótipo, aproveitando sua expertise em estruturas metálicas pesadas. O veículo foi concluído a tempo de ser exibido na British Army Equipment Exhibition em junho de 1986.
Especificações do protótipo AS90 Mallet (Verolme):
- Calibre: 155 mm
- Alcance de tiro: 41 km (com munição assistida por foguete)
- Peso total: 35 toneladas (com 42 obuses a bordo)
- Motor: Cummins de 600 cv (importado dos EUA)
- Autonomia: 500 km
- Cadência de tiro: 6 tiros por minuto, graças a sistema automático de pontaria
- Blindagem: inexistente (projetado para operar em retaguarda)
Apesar do sucesso técnico do protótipo, o colapso financeiro da Verolme impediu a continuidade do projeto. O acordo com a Vickers foi cancelado, e o desenvolvimento do AS90 seguiu exclusivamente no Reino Unido.
Hoje, o AS90 é produzido em série pela BAE Systems (sucessora da Vickers) e permanece em serviço ativo no Exército Britânico e em outros países.
O Fim da Verolme Brasil e o Legado Industrial
A crise estrutural da indústria naval brasileira, somada à instabilidade macroeconômica dos anos 1980 e 1990, selou o destino da Verolme. Em 1991, já em concordata, o estaleiro foi adquirido pelo empresário Nelson Tanure, que também assumiu a Emaq e, posteriormente, a Ishikawajima. Sob seu comando, os ativos foram desmantelados ou paralisados, levando as empresas à pré-falência.
Somente em 2000, após anos de inatividade, o estaleiro de Angra dos Reis foi resgatado pelo grupo Keppel Fels, de Cingapura — que, ironicamente, também havia adquirido a própria Verolme holandesa. A unidade brasileira passou a operar como Keppel Verolme Brasil, focada em reparos navais e construção de módulos offshore.
Conclusão: Uma Lição de Inovação em Tempos de Crise
A trajetória da Verolme Brasil é mais do que a história de um estaleiro. É um retrato da engenhosidade industrial brasileira diante da adversidade. Ao tentar produzir caminhões de combate a incêndio e até obuses para a OTAN, a empresa demonstrou que a capacidade técnica existia — o que faltou foi apoio institucional, estabilidade econômica e visão de longo prazo.
Seu legado permanece como um alerta e uma inspiração: em tempos de crise, a diversificação pode ser um caminho — mas só prospera com planejamento, parcerias sólidas e um ecossistema industrial saudável.
A Verolme não sobreviveu. Mas suas ambições, especialmente o protótipo AS90 Mallet, provam que o Brasil poderia ter sido muito mais na indústria de defesa — se tivesse tido a chance.
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