Moto-Peças S.A.: A Indústria Brasileira que Impulsionou a Defesa Nacional com Engenhosidade e Autonomia
Fundada em 1956, a Moto-Peças S.A. – Transmissões e Engrenagens tornou-se, na década de 1970, a maior indústria brasileira especializada na fabricação de componentes para câmbios e diferenciais. Com unidades industriais em São Paulo e Sorocaba (SP), a empresa não apenas dominou o setor automotivo civil, mas também desempenhou um papel estratégico e pioneiro na modernização do parque de equipamentos militares do Exército Brasileiro. Ao longo de três décadas, a Moto-Peças transformou-se num verdadeiro parceiro técnico das Forças Armadas, contribuindo para a soberania tecnológica, a autonomia logística e a capacidade de inovação do Brasil em matéria de defesa.
Origens e Ascensão Industrial
Nascida num Brasil em pleno processo de industrialização, a Moto-Peças surgiu com foco em transmissões mecânicas de alta precisão. Rapidamente, consolidou-se como fornecedora confiável para montadoras nacionais e internacionais. Contudo, foi na intersecção entre engenharia de precisão e necessidades militares que a empresa encontrou seu maior legado.
A partir de meados dos anos 1970, a Moto-Peças iniciou uma parceria técnica com o Exército Brasileiro, coordenada pelo Centro Tecnológico do Exército (CTEx). Essa colaboração marcou o início de uma era de nacionalização e revitalização de equipamentos obsoletos, numa época em que o país buscava reduzir a dependência de importações e aumentar sua capacidade de manutenção independente.
Primeiros Projetos Militares: Revitalizando a Artilharia
O primeiro grande marco dessa parceria foi a modernização de cerca de 30 tratores de artilharia M-4, originalmente fabricados pela norte-americana Allis-Chalmers na década de 1940. Esses veículos, essenciais para o deslocamento de peças de artilharia pesada, estavam obsoletos e com peças de reposição escassas.
A Moto-Peças executou uma reforma profunda:
- Substituição do motor original por um Scania de 260 cv;
- Troca completa da caixa de marchas e transmissão (projetadas e fabricadas internamente);
- Renovação das esteiras, roletes e suspensão, fornecidos pela empresa Novatração, parceira estratégica.
O sucesso técnico desse projeto abriu as portas para missões ainda mais ambiciosas.
Caixas de Marcha para os Blindados X1A2 Carcará
Logo em seguida, a empresa foi convidada a desenvolver as caixas de marcha para a nova geração de blindados leves X1A2 Carcará, produzidos pela Bernardini S.A. — uma das mais importantes indústrias de defesa do Brasil na época.
Os Carcará eram o resultado da modernização dos tanques M3 Stuart da Segunda Guerra Mundial, transformados em veículos de reconhecimento ágeis e eficazes. A contribuição da Moto-Peças foi essencial para garantir desempenho, confiabilidade e manutenção simplificada desses veículos no campo de batalha.
Inspirada por essas experiências, a empresa cogitou, no final da década de 1970, expandir-se para o setor agrícola, com planos de fabricar no Brasil tratores da norte-americana White. Apesar do entusiasmo, o projeto nunca se concretizou, devido a restrições econômicas e à instabilidade do mercado agrícola naquele período.
Anos 1980: O Auge da Inovação Militar
A década de 1980 marcou o auge da atuação da Moto-Peças no setor de defesa, com projetos de grande complexidade técnica e alcance estratégico.
1. Conversão dos Tanques Sherman M4 em Veículos de Engenharia
Em parceria com o CTEx, a Moto-Peças liderou o projeto de transformar tanques Sherman M4 — herdados da Segunda Guerra e em grande número no estoque do Exército — em viaturas blindadas de engenharia militar.
O veículo resultante:
- Utilizava o chassi, suspensão e transmissão original do Sherman;
- Recebia lâmina frontal (intercambiável por caça-minas);
- Incorporava grua hidráulica com lança rebatível, capaz de levantar até 10 toneladas;
- Transportava tripulação de até 8 homens;
- Pesava 29 toneladas e podia rebocar viaturas de até 40 t.
Apesar da engenhosidade, uma pré-série de 11 unidades foi produzida, mas os testes revelaram deficiências operacionais, e o projeto não foi homologado para produção em série.
2. Repotenciamento dos Obuseiros M108
Outro marco foi a modernização da frota de 72 obuseiros autopropulsados M108, recebidos dos EUA em 1972. Com motores Detroit V8 diesel de difícil manutenção, os obuseiros enfrentavam constantes problemas logísticos.
A Moto-Peças substituiu o motor original por um Scania nacional de 385 cv, garantindo:
- Maior disponibilidade operacional;
- Redução drástica de custos de manutenção;
- Compatibilidade com a cadeia de suprimentos nacional.
3. Modernização dos Anfíbios M113 – Nascimento do M113-B
O projeto de maior impacto foi a reforma dos veículos anfíbios M113, cuja frota superava 500 unidades no Brasil. Originalmente movidos por um motor V8 Chrysler a gasolina de 215 cv, com consumo de 1 litro por quilômetro, os M113 eram logística e taticamente insustentáveis.
A Moto-Peças desenvolveu a versão M113-B, com:
- Motor Mercedes-Benz OM 314 diesel, 6 cilindros, 180 cv;
- Autonomia aumentada em mais de 70%;
- Revisão completa dos sistemas elétrico, de alimentação e arrefecimento.
O primeiro lote foi entregue em novembro de 1985, tornando-se um dos maiores sucessos da engenharia de defesa nacional.
🔹 Ironia histórica: cerca de 25 anos depois, parte dessa mesma frota passaria por nova modernização — mas não mais por mãos brasileiras. Sob a lógica da globalização e desindustrialização, os trabalhos foram executados pela BAE Systems (Reino Unido) para o Exército e por uma empresa israelense para o Corpo de Fuzileiros Navais, simbolizando o retrocesso da capacidade nacional de defesa.
O Projeto Charrua: O Sonho do Anfíbio 100% Brasileiro
O mais ambicioso e emblemático projeto da Moto-Peças foi o desenvolvimento do Charrua, um veículo anfíbio de desembarque rápido, concebido a partir de 1983 para substituir os obsoletos M-59 (da Guerra da Coreia) e complementar os M113.
O Charrua (e sua evolução, o Charrua II) era uma obra-prima da engenharia militar brasileira:
- Blindagem: resistente a tiros de 7,62 mm, com possibilidade de proteção contra calibre .50 mediante placas cerâmicas;
- Motor: Scania de 394 cv, posicionado na dianteira direita;
- Transmissão: caixa automática Allison (EUA), com 2 marchas à frente e ré;
- Propulsão aquática: dois hidrojatos, permitindo alta manobrabilidade na água;
- Suspensão: 10 barras de torção + 8 amortecedores;
- Acesso: rampa traseira hidráulica, portas laterais e escotilhas no teto;
- Capacidade: 3 tripulantes + 9 soldados (até 22 pessoas em versões especiais);
- Versatilidade: 11 variantes planejadas, incluindo:
- Comando;
- Ambulância;
- Oficina móvel;
- Radar;
- Lançador de mísseis;
- Canhão de 155 mm;
- Porta-morteiro de 120 mm.
Os testes, realizados pelas Forças Armadas (Exército e Marinha), demonstraram excelente desempenho tático, com capacidade de giro no próprio eixo em terra e ágil navegação em rios e zonas costeiras.
Infelizmente, com o colapso orçamentário pós-Guerra Fria e a queda nas exportações de material bélico, o projeto nunca saiu da fase de protótipos. Apenas dois exemplares foram construídos — hoje guardados como testemunhos de um Brasil que ousou sonhar com autonomia em defesa.
Sobrevivência num País em Crise Industrial
Enquanto a maioria das empresas nacionais de defesa — como Bernardini, Engesa, EEI — desapareceu ou foi desmontada nas décadas de 1990 e 2000, a Moto-Peças Transmissões S.A. conseguiu sobreviver. Não como gigante da indústria bélica, mas como especialista em transmissões de alta precisão, mantendo sua expertise técnica e sua razão social original.
Sua história é um símbolo de resiliência, mas também de alerta: o Brasil teve, sim, capacidade de inovar, projetar e produzir tecnologia de defesa soberana. O que faltou não foi talento — mas política industrial, continuidade estratégica e investimento de Estado.
Conclusão: Um Legado de Engenharia e Soberania
A Moto-Peças nunca fabricou um tanque completo, mas deu coração, nervos e músculos a dezenas de veículos que protegeram e mobilizaram as Forças Armadas brasileiras. Sua trajetória é um lembrete de que tecnologia de defesa não é privilégio de grandes potências, mas fruto de vontade nacional, parceria institucional e engenho local.
Hoje, em tempos de reindustrialização e busca por autonomia estratégica, o exemplo da Moto-Peças serve como inspiração e guia: o Brasil já fez — e pode fazer de novo.
#MotoPeças
#IndústriaDeDefesa
#SoberaniaTecnológica
#ForçasArmadasBrasileiras
#EngenhariaBrasileira
#HistóriaMilitarDoBrasil
#M113B
#ProjetoCharrua
#Desindustrialização
#AutonomiaEmDefesa
#CTEx
#ExércitoBrasileiro
#InovaçãoNacional
#IndústriaNacional
#DefesaEB
#VeículosMilitares
#EngenhariaMecânica
#PatrimônioTecnológico
#BrasilQueInova
#Indústria40
#ResistênciaIndustrial
#MotoPeçasTransmissões
#HistóriaDaIndústriaBrasileira
#NosNaTrilha
#DefesaComConhecimento






Nenhum comentário:
Postar um comentário